As tatuagens mais antigas do mundo: Ötzi, o Homem de Gelo
No coração dos Alpes Ötztal, na fronteira entre a Áustria e a Itália, uma descoberta em 1991 chocou o mundo da arqueologia e reescreveu a história da humanidade. Dois turistas alemães, Helmut e Erika Simon, tropeçaram em um corpo humano congelado, preso no gelo. Mal sabiam eles que haviam acabado de encontrar um dos artefatos mais bem preservados da Idade do Cobre: Ötzi, o Homem do Gelo.
A princípio, o corpo foi confundido com o de um alpinista moderno que havia se perdido e tido o azar de nunca ter sido encontrado. Mas a análise com mais cuidado feita depois revelou algo muito mais extraordinário. Ötzi não era um homem dos tempos atuais, mas sim uma múmia natural com cerca de 5.300 anos, um testemunho vivo de uma era remota, preservado quase intacto pelo gelo eterno.
Desde a sua descoberta, Ötzi se tornou um dos indivíduos pré-históricos mais estudados de todos os tempos. Sua roupa, suas ferramentas, seu último jantar e até mesmo seu material genético foram meticulosamente analisados, oferecendo uma janela sem precedentes para a vida na Idade do Cobre. Mas, entre todos os mistérios que Ötzi revelou, um se destaca pela sua singularidade e complexidade: suas tatuagens!
Essas marcas azuis-escuras, quase imperceptíveis à primeira vista, são as tatuagens mais antigas conhecidas no mundo, antecedendo em milênios as famosas múmias egípcias. Elas não são meros adornos, mas sim um enigma que desafia a nossa compreensão da arte corporal antiga e de suas funções. Seriam símbolos de status? Marcas rituais? Ou como as pesquisas mais recentes sugerem, teriam um propósito médico?
Bora embarcar em uma jornada no tempo para desvendar a história de Ötzi, desde o momento de sua descoberta até as mais recentes revelações científicas sobre sua vida, sua morte e, claro, suas enigmáticas tatuagens. Prepare-se para uma imersão profunda no passado, onde a ciência encontra a arqueologia para revelar os segredos do Homem do Gelo.
O Descobrimento e a Jornada de Ötzi para a Ciência
A história do descobrimento de Ötzi é quase tão fascinante quanto a própria múmia. Em 19 de setembro de 1991, em uma altitude de 3.210 metros, o casal Simon explorava o glacial de Similaun, nos Alpes de Ötztal. A temporada de verão daquele ano havia sido excepcionalmente quente, resultando em um derretimento incomum do gelo, o que expôs o corpo de Ötzi e parte de seus pertences. Olha só os planetas se alinhando.
Inicialmente o corpo foi removido de forma um tanto desajeitada pelas autoridades locais, que não estavam cientes da importância da descoberta. Houve até mesmo danos aos restos mortais durante a tentativa inicial de extração, como a quebra de um de seus quadris. No entanto, a arqueóloga austríaca Erika Simon, ao examinar os artefatos encontrados com o corpo (um machado de cobre, uma adaga de sílex, um arco e um aljava com flechas) rapidamente percebeu que aquilo não era um alpinista moderno. A urgência de uma recuperação profissional e cuidadosa tornou-se evidente.
Uma equipe de arqueólogos foi acionada, e a remoção final do corpo e dos artefatos foi realizada com o devido cuidado. Ötzi foi então transportado para a Universidade de Innsbruck, na Áustria, onde os cientistas ficaram assustados com o nível de preservação. Sua pele, músculos, órgãos e até mesmo seu cérebro estavam surpreendentemente intactos. O corpo apresentava uma coloração escura devido ao processo de mumificação natural.
A datação por carbono-14 confirmou o que as ferramentas sugeriam: Ötzi viveu entre 3350 e 3100 a.C., um período crucial na transição da Idade da Pedra para a Idade do Cobre. Ele representava uma janela sem precedentes para a vida na Europa pré-histórica, uma “cápsula do tempo” congelada.
Desde sua chegada ao Museu de Arqueologia do Tirol do Sul, em Bolzano, Itália, onde é mantido em uma câmara fria com condições controladas de temperatura e umidade (cerca de -6°C e 98% de umidade), Ötzi se tornou um foco intenso de pesquisas de várias áreas. Cientistas de todo o mundo se uniram para desvendar seus segredos, utilizando as mais avançadas técnicas forenses e arqueológicas. A jornada de Ötzi, de uma figura esquecida no gelo a um ícone da ciência, estava apenas começando.
A Vida de Ötzi: Um Retrato da Idade do Cobre
A análise forense de Ötzi permitiu traçar um perfil detalhado de sua vida, oferecendo informações sobre a dieta, a saúde, o estilo de vida e até mesmo as doenças que afligiam as pessoas da Idade do Cobre. Quando morreu, Ötzi tinha aproximadamente 45 anos, uma idade considerável para a época. Ele media cerca de 1,60 metros de altura e pesava em torno de 50 quilos. A reconstrução facial, baseada na estrutura de seu crânio, revela um homem com traços marcados pelo tempo e pela vida ao ar livre. Imaginem só uma vida sem internet…
Saúde e Doenças
Os restos mortais de Ötzi revelaram uma série de problemas de saúde, alguns dos quais ainda nos afligem hoje. Ele sofria de artrite, especialmente nos joelhos e no quadril, o que sugere uma vida de esforço físico. Exames revelaram também a presença de doença de Lyme, tornando-o o caso mais antigo conhecido dessa infecção bacteriana transmitida por carrapatos. Ele também tinha cáries e doença periodontal, indicando uma dieta que, embora natural, não era isenta de açúcares ou amidos que prejudicavam a saúde bucal.
Curiosamente, Ötzi também tinha parasitas intestinais, incluindo o verme-chicote (Trichuris trichiura), o que indica que ele provavelmente consumia carne malcozida ou água contaminada. A análise de seus pulmões mostrou resíduos de fumaça, sugerindo que ele passava muito tempo perto de fogueiras ou em abrigos com pouca ventilação.
Dieta e Última Refeição
A análise do conteúdo de seu estômago ofereceu um vislumbre fascinante de sua última refeição. Os cientistas descobriram restos de carne de cabra-montesa (ibex) e carne de veado, além de grãos de cereais, provavelmente einkorn (uma espécie de trigo primitivo), e vestígios de samambaia. Essa dieta rica em proteínas e fibras sugere que Ötzi era um caçador-coletor, que complementava sua alimentação com agricultura rudimentar ou produtos florestais. A presença de samambaia levantou a hipótese de que ele a teria comido para combater os parasitas intestinais, ou que foi um acidente ao consumir a carne de cervos que se alimentavam da planta.
Roupas e Equipamentos
Ötzi estava incrivelmente bem equipado para a vida nas montanhas. Suas roupas eram feitas de diversas peles de animais, incluindo urso e cabra, costuradas com tendões de animais. Ele usava um casaco, perneiras, um chapéu de pele de urso e sapatos de couro forrados com grama, projetados para isolamento e tração no terreno acidentado.
Seu arsenal incluía um machado de cobre, uma ferramenta valiosa e rara na Idade do Cobre, indicando seu status social. Ele também carregava um arco de teixo inacabado, um aljava com 14 flechas (duas completas e as restantes em processo de fabricação), uma adaga de sílex com bainha, um raspador, uma bolsa de cintura com cogumelos medicinais (possivelmente para sangramentos e inflamações), e um tipo de mochila de madeira.
Todos esses artefatos foram meticulosamente preservados, oferecendo uma compreensão sem igual da tecnologia da Idade do Cobre.
O Enigma das Tatuagens de Ötzi
Das muitas características notáveis de Ötzi, suas tatuagens são sem dúvida uma das mais intrigantes. O Homem do Gelo exibe um total de 61 tatuagens, distribuídas por várias partes do seu corpo, incluindo as costas, pernas, joelhos, tornozelos e pulsos.
Técnica e Composição
A técnica envolvia fazer pequenas incisões na pele e, em seguida esfregar pó de carvão ou fuligem nas feridas abertas. Essa substância era absorvida pela pele, criando as marcas azul-escuras que vemos hoje. A análise química confirmou que o pigmento usado era carvão vegetal. Essa técnica, embora rudimentar, era eficaz para criar marcas permanentes.
As tatuagens de Ötzi não são desenhos complexos como animais ou símbolos elaborados. Em vez disso, elas consistem principalmente em linhas paralelas e cruzes, arranjadas em grupos. A maioria dessas marcas é relativamente pequena e discreta, e algumas são quase invisíveis a olho nu, exigindo iluminação especial ou fotografias infravermelhas para serem plenamente visualizadas.
Padrões e Localização
Os padrões mais comuns são grupos de linhas paralelas, geralmente em grupos de 2, 3 ou 4. Por exemplo, na região lombar de Ötzi, há várias séries de linhas paralelas correndo verticalmente. Nas pernas, especialmente ao redor dos tornozelos e joelhos, há aglomerados de linhas e algumas marcas em forma de cruz. Há também um grupo de linhas no pulso esquerdo.
A distribuição das tatuagens é particularmente notável. Elas não parecem ser aleatórias. A grande maioria das tatuagens está localizada em áreas do corpo que correspondem a pontos de acupuntura ou áreas frequentemente afetadas por dor crônica, como a região lombar, as articulações dos joelhos e os tornozelos.
As Primeiras Teorias: Símbolos, Rituais ou Status?
Após a descoberta das tatuagens, as primeiras teorias sobre seu propósito foram variadas. Alguns pesquisadores sugeriram que poderiam ser símbolos tribais ou de pertencimento a um clã. Outros especularam que poderiam ser marcas rituais, talvez relacionadas a ritos de passagem ou crenças espirituais daquela época. A ideia de que seriam símbolos de status também foi levantada, dada a dificuldade e a dor envolvidas no processo de tatuagem e o valor do machado de cobre que Ötzi possuía. Maluco ostentava!
No entanto, à medida que mais detalhes sobre a saúde de Ötzi foram revelados, uma nova e mais convincente teoria começou a ganhar força.
Paralelos com a Acupuntura Tradicional Chinesa
O Dr. Frank Rühli, do Instituto de Medicina Evolutiva da Universidade de Zurique, e outros pesquisadores começaram a notar a semelhança entre a localização das tatuagens de Ötzi e os pontos de tratamento da acupuntura tradicional chinesa. Embora a acupuntura seja geralmente associada à China antiga e se acredite ter surgido milênios depois da época de Ötzi, a ideia de que a estimulação de pontos específicos do corpo poderia aliviar a dor não é exclusiva de uma única cultura.
Essa teoria sugere que as tatuagens de Ötzi não eram decorativas, mas sim terapêuticas. Em outras palavras, elas poderiam ter sido aplicadas como uma forma primitiva de tratamento para aliviar suas dores e desconfortos crônicos. A técnica de incisão e esfregamento de carvão poderia ter sido uma forma de “agulhamento” permanente, ou talvez a fuligem tivesse propriedades medicinais ou fosse vista como um agente curativo.
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